Lembrou-se do cheiro da
terra úmida no quintal, quando o jardim era regado nas noites frescas de verão,
que colocavam uma breve pausa no calor escaldante característico da pequena
cidade. Assistia à novela, na companhia da mãe, enquanto via, pela porta da
sala, o pai cuidar das flores, com dedicação e satisfação estampada no rosto,
agora despreocupado. Desde que se lembrava, cozinha não era mais lugar só de
mulher, tampouco as flores, com todo o encanto e a leveza com que cativavam,
eram exclusividade feminina. Em sua casa, nunca houvera disputa ou hierarquia
de poder. A mãe era mãe e, de vez em quando, irmã, no melhor sentido da
palavra. O pai era pai e, às vezes, dava o ar da graça no papel de mãe. Nunca
havia imaginado o quanto aquelas noites lhe trariam saudades.
Um dia cismara em perder-se
no mundo. Dar as caras em outro lugar, esquecer que teve pai e mãe, mostrar que
se tornou dono do próprio nariz. Bem distante, ninguém ousaria tirar-lhe das
mãos o troféu conseguido com tanto ardor. Vivia a certeza. Sentia o sonho se aproximar.
Era tudo uma questão de tempo, até que pudesse se vangloriar de sua performance
ímpar.
O tempo passou e as idéias
alcançaram estágio de maturação. O terreno mais fértil de sua existência
trabalhava de maneira assustadoramente rápida e confusa. Sentimentos
completamente imprecisos colocavam onda em rio e canoa em maré. A compreensão
era resultado raro e, às vezes, conformava-se com pensamentos amalucados, sem
origem nem destino, que mal davam fé de si mesmos.
Foi. Não que quisesse ir,
mas a vida empurrou. Muita gente remando a favor da correnteza e acabou indo
também. De tempos em tempos, deitava-se no barco, de barriga para a lua e apreciando
as estrelas, e protagonizava um eterno diálogo não correspondido. Talvez, o brilho
das constelações fizessem brilhar também sua alma. Imaginava coisas e
comprovava o contrário. Perdeu muitas batalhas travadas com suas próprias
necessidades. Começou a entender a lógica tão ilógica do mundo. Amou e desamou.
Percebeu que não era amor. Se amou. Descobriu a ciclicidade dos fatos e dos sentimentos.
O seu tempo no tempo terreno
apenas se iniciava, mas o peito já palpitava de ansiedade, porque cada dia a
mais, era um a menos. Só de serem pensadas, as próximas dezenas e centenas
deles já faziam sentir a distância, cada vez maior, daquelas noites de verão,
que eram, do seu pequeno mundo, a mais alta expressão da felicidade simples e
plena. O cheiro da terra ainda adentrava em suas narinas, assim como a luz que
um dia clareou o quintal iluminava seus olhos, livrando da escuridão do porvir
e permitindo sentir, pela última vez, a ternura e o aconchego daqueles momentos
doces. Queria viver só mais um dia das crianças, e envolveria, num abraço, as
flores que, em silêncio, gritavam a alegria de sua presença, para então aceitar
perder-se na vida, carregando as memórias inocentes, que dariam cor ao futuro e
um dia se ajuntariam à saudade de ter selado o beijo mais sincero e saboroso de
que a vida já deu notícia.
Jéssica
Vieira.
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